sábado, 4 de agosto de 2012

Entre os homens tolos

Trecho retirado do livro Sidarta .
 Pra quem já se sentiu exatamente como ele , num capitulo que me fez chorar (ok , tudo me faz chorar) .



 "Era bem verdade que seu coração permanecia distante do comércio . Os negócios serviam para propiciar-lhe dinheiro para Kamala , e o lucro que provinha deles dava-lhe muito mais do que apenas o necessário . De resto , a simpatia e a curiosidade de Sidarta pertenciam às criaturas humanas , cujos trabalhos , ofícios , cuidados , diversões e tolices outrora não haviam lhe interessado em absoluto . Ainda que não encontrasse nenhuma dificuldade em conversar ou conviver com qualquer um e em aprender alguma coisa de todos , percebia com crescente nitidez que existia algo que o separava dos demais homens : seu passado de samana . Ao observar aquela existência infantil ou animalesca qye levavam os seres humanos , ao mesmo tempo adorava e desprezava tal estilo de vida . Via como labutavam , sofriam , envelheciam por causa de assuntos que nao lhe pareciam valer tamanho esforço e como se empenhavam em obter dinheito , prazeres minúsculos , honrarias insignificantes . Ouvia como se censuravam e se insultavam mutuamente , como choravam suas dores que fariam rir a um samana , e notava o quanto lhes custavam certas privações que um samana nem sequer sentia .
(...) De quando em quando , ressoava no âmago do seu peito uma vozinha suave , como que agonizante , a exortá-lo bem baixinho e a queixar-se quase imperceptivelmente . Nessas horas , Sidarta , por uns poucos instantes , dava-se conta de que levava uma existência estranha , de que se limitava a fazer coisas que não passavam de um brinquedo . Notava então que tudo isso lhe causava um certo prazer e amiúde o alegrava , mas que a verdadeira vida decorria longe dele , sem tocá-lo . Assim como um malabarista brinca com suas bolas , assim brincava ele com seus negócios e com os homens que o rodeavam . Contemplava-os , divertia-se à sua custa , sem que seu coração e a fonte de sua alma participassem dessas atividades . Essa fonte jorrava em outra parte , muito distante da sua pessoa ; jorrava e prosseguia jorrando , invisível , sem nada ter que ver com a vida de sidarta . E momentos houvem em que ele se assustou de tais pensamentos , desejando que lhe fosse dado , também a ele , participar apaixonadamente , de todo o coração , daquelas ocupações cotidianas , infantis . Almejava viver realmente , gozar realmente , agir realmente , em vez de restringir-se ao papel de mero espectador .
Mas , volta e meia ia visitar a formosa Kamala . Estudava a arte de amar . Exercitava-se no culto das delícias , no qual , mais do que em nenhum outro , os atos de dar e de tomar fundem-se num só . Conversava om a moça , aprendia dela , aconselhava-a e recebia , por sua vez , conselhos . Ela o compreendia melhor do que Govinda jamais o compreendera , uma vez que tinha maior afinidade com ele .
Certa feita , disse-lhe Sidarta :
- Tu és como eu . És diferente dos outros seres humanos . És Kamala , e nada mais . No teu íntimo há calma e asilo , e a qualquer instante podes retirar-te dali , para estares a sós contigo mesma , assim como eu também o sei fazer . Poucos homens têm essa faculdade e , todavia , não há nenhum que não possa gozar dela .
- Nem todos são inteligentes - replicou Kamala .
- Não - continuou Sidarta - essa não é a razão . Kamasvami é tão inteligente quanto eu e , todavia , não encontra nenhum refúgio no seu íntimo , ao passo que outras pessoas o conseguem , embora não tenham mais siso do que uma criancinha . Olha , Kamala , a maioria das criaturas humanas é como folha arrancada , a flutuar e revolver-se no ar , até ir ao chão . Outras , porém , parecem-se com os astros que andam numa órbita fixa , sem que nenhum vento possa alcançá-los , e têm em si próprios sua lei e sua rota . Entre todos os eruditos e os samanas , com os quais travei contato , um único era assim , um homem perfeito , que jamais poderei esquecer . É aquele Gotama , o ublime , o criador da doutrina que conheces . Dia a dia , milhares de discípulos ouvem essa doutrina ; hora por hora , obedecem aos seus preceitos . Mas , todos eles são folhas arrancadas , uma vez que não possuem em si a doutrina e a lei .
Kamala olhou-o com um sorriso ;
- Novamente andas falando dele - disse - Voltaste a ter idéias de samana .
Sidarta calou-se e ambos deram-se ao jogo do amor , a um dos trinta ou quarenta jogos diferentes que kamala conhecia . Seu corpo era flexivel como o do jaguar ou como o arco de um caçador . Quem aprendesse dela o amor saberia grande número de prazeres e de mistérios . Por muito tempo , Kamala brincava com Sidarta , atraindo-o , afastando-o de si , cingindo-o com os braços , regozijando-se da sua maestria , até que ele descansasse a seu lado , vencido e exausto .
Inclinando-se sobre ele , a hetaira espreitou-lhe demoradamente a fisionomia e os olhos fatigados .
- Tu és o melhor amante - Disse então , pensativa - que já tive em toda minha vida . És mais forte , mais desembaraçado , mais dócil do que qualquer outro . Muito bem assimilaste a minha arte , ó Sidarta . Um dia , quando eu for mais velha , gostaria de ter um filho teu . E , todavia , meu caro , és ainda um samana . Apesar de tudo não me amas . Não amas a ninguém . Não é ?
- Pode ser que seja assim - respondeu Sidarta , lassamente . - Sou igual a ti . Tampouco sabes amar . De outra forma , nunca serias capaz de fazer do amor uma arte . Possivelmente , criaturas como nós não poderão jamais amar . Os outros homens , por tolos que sejam , têm essa faculdade . Nisso reside o seu segredo ."

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